LICORICE PIZZA PROCURA UM LUGAR FELIZ NUM FUTURO INCERTO

Monique van Dresen

“Nunca se deve colocar um rifle carregado no palco se ele não vai explodir”.  A frase do dramaturgo russo Anton Chekhov dá nome a uma estratégia narrativa, um princípio literário que Paul Thomas Anderson cumpre com primor em Licorice Pizza, em cartaz nos cinemas. O título faz referência a uma rede de lojas de discos em San Fernando Valley, onde Anderson cresceu e a história se desenrola, mas também traduz a relação entre Gary e Alana, os personagens centrais da trama: o alcaçuz (licorice) e a pizza, duas coisas que não combinam até que a cor e a consistência de um e a forma do outro inspirem algo mágico como um vinil.

Extremamente elogiado pela crítica, Licorice foi indicado para o Oscar em três categorias: Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original. Saí do cinema já sentindo falta dos jovens impetuosos, abertos para possibilidades. Mais que isso, saí intrigada. Intrigada porque as pessoas raramente andam a pé em Los Angeles, porque o filme está sendo considerado um dos melhores do ano, porque tentava colocar os lugares em um mapa de Los Angeles que só existe na minha cabeça, intrigada porque aprendi a esquecer que é proibido proibir.

Vi o filme há quase 72 horas, tenho mais perguntas que respostas, mas meu coração parece um cachorro grande e velhinho deitado no sofá. O roteiro é impecável. A fotografia, rica e colorida. A ação se passa entre Encino e Sherman Oaks, dois bairros do “Vale” de Los Angeles, uma área ao norte e de costas para o sinal de Hollywood. Valentine Cooper Hoffman (filho de Philip Seymour Hoffman, que morreu em 2014) vive Gary, um ator mirim de 15 anos. É um Cyrano de Bergerac com espinhas que faz pequenos papéis e usa o dinheiro para “empreender”.

Alana (Haim, que interpreta a personagem com o mesmo nome) tem 25 anos e trabalha  preparando adolescentes para fotos. O relacionamento dos dois, em constante evolução, fornece a estrutura para o filme, mas muito de “Licorice Pizza” gira ao redor da jornada de Alana. Ela experimenta prioridades e personalidades distintas, empregos e roupas (O figurinista do filme é Mark Bridges, que venceu o Oscar com Trama Fantasma, do mesmo Anderson), procura um lugar no mundo. Haim tem carisma. A mais nova das três irmãs que compõem a banda indie HAIM tem um timing cômico impecável.

As cenas externas se passam quase todas na Ventura Boulevard, em um trecho de mais ou menos 10 quilômetros entre os bairros de Encino, mais popular (na época) e Sherman Oaks. A avenida dá nome a uma música do disco Roots, dos The Everly Brothers, é mencionada na letra de “Free Fallin”, de Tom Petty e em Valley Girl, de Frank Zappa. A trilha sonora do filme, aliás, é maravilhosa:  tem Stumblin’ In, de Chris Norman & Suzi Quatro,  Blue Sands, com Buddy Collette e Chico Hamilton Quintet  e Let Me Roll It, de Paul McCartney, para citar apenas três faixas.

Simples, “fechadinho”, surpreendente. Assim é Licorice Pizza. E aqui talvez esteja o segundo rifle de Chekhov, não por mérito de Paul Thomas Anderson, mas do espírito do nosso tempo, da tal sincronicidade. Anderson escreve um final feliz para um futuro incerto, e talvez tenha feito o filme certo para tempos em que, para não enlouquecer, precisemos escapar: o que acontece na Ucrânia vai definitivamente interferir na forma como o mundo se organiza politica, econômica e belicamente. No cinema, Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho, já mostrou que enchente é enchente, em Petrópolis, São Paulo ou Seoul. O preço da energia está subindo, a Europa depende do gás da Rússia e é pouco provável que a Rússia responda às sanções que Europa e Estados Unidos estejam em condições de empregar. Inflação, desigualdade, desemprego, salários baixos e violência estão em toda a parte.

A crise do petróleo, o dono de restaurante racista, os abusos da polícia, o patrão que se acha no direito de passar a mão na bunda de uma jovem: em 1973 também há uma crise em toda parte, e tudo é uma fonte de tensão para os dois personagens enquanto tentam improvisar o seu caminho pelo mundo. Anderson não gasta mais de seis linhas de falas com razões geopolíticas: mostra Gary correndo em câmera lenta, passando por longas filas de carros nos postos de gasolina, enquanto ouvimos  “Life on Mars”, de David Bowie, em segundo plano. Gary e Alana correm pela Ventura Boulevard, começam negócios, flertam, fingem que não se importam um com o outro e tentam se apaixonar por outras pessoas.

Há também uma certa nostalgia pelos tempos em que, como no da ação, só existiam duas formas de fazer as coisas acontecerem — telefonar para alguém (que deveria estar em local sabido) ou ir a algum lugar. Licorice é exuberante em cada diálogo, em cada caminhada, corrida, acelerada, voo, tombo. Morei em Los Angeles, a menos de 800 metros de um “Tail ‘o the Cock”, o restaurante que é quase um personagem no filme, quando tinha 14 anos.  Estes meus “14 anos” duraram mais ou menos 1425 dias, entre o fim de 1980 e o início de 1985. Em Licorice Pizza, a idade e o tempo também são números mágicos e vagos.

Acredito que parte do sucesso de Licorice – não podemos esquecer que Hollywood também é um personagem _ esteja nesta possibilidade de correr em câmera lenta numa luz que lembra o Kodachrome, ao som de David Bowie enquanto o planeta se desmancha. A trama é linear (não há flashbacks), e a narrativa é construída com uma certa audácia, mas cirurgicamente lógica. Sean Penn interpreta uma estrela de cinema em decadência, e Benny Safdie aparece em uma subtrama como um político que vive uma vida dupla. Alguns personagens são reais, outros são baseados em personalidades reais, como Lucille Ball (Christine Ebersole). O personagem de Penn é baseado em William Holden, que fez A Ponte do Rio Kwait, e o de Tom Waits em Mark Robson, que dirigiu O Vale das Bonecas.

Poucos cineastas têm um domínio tão inteiro de seu ofício – desde os ambiciosos plano sequência (Anderson divide a Fotografia com Michael Bauman), até a edição.  Há precisão e intenção em tudo. Alana e Gary fazem uma dupla arrebatadora, vulnerável, que sustenta a matriz de incidentes com uma coerência indiscutível. Em uma cena, Haim dirige um caminhão baú sem gasolina descendo de ré uma estrada sinuosa de pista simples nas colinas de Hollywood. O filme tem duas horas e 13 minutos de duração, mas parece não ter mais que 90 minutos. “Licorice Pizza” Nos traz um tipo de nostalgia que manifesta-se como as memórias geralmente se revelam: bagunçadas e sem forma, mas densas, profundas.

Acho difícil Licorice levar o Oscar de melhor filme. Nesta categoria, compete com narrativas mais políticas e diversas como “Belfast”, “Ataque dos cães”, “No ritmo do coração” e o japonês  “Drive my car”.  Mas seria uma zebra perder para “Não olhe para cima”, “Duna”, “King Richard”, “O beco do pesadelo” ou “Amor, sublime amor”. A melhor direção, onde Anderson concorre com Kenneth Branagh (Belfast), Ryusuke Hamaguchi (Drive my car), Jane Campion (Ataque dos cães) e Steven Spielberg (Amor, sublime amor), é uma possibilidade, mas vai ser difícil bater Jane Campion. É bem provável que leve a estatueta pelo melhor roteiro original, onde compete com Belfast, Não olhe para cima, King Richard, e A pior pessoa do mundo.

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